domingo, 30 de março de 2008

Os dois irmãos

Sou o caçula de uma familia de 10 filhos, do interior de Minas Gerais. Fui o único da casa que nasceu em um hospital. Os outros partos aconteceram na casa da fazenda, uma antiga fábrica de manteiga, de propriedade do meu avô que, após o casamento dos meus pais, tornou-se lar desta numerosa trupe. Era uma fazenda muito próxima da cidade, de modo que vivíamos um pouco isolados da comunidade, um pouco perto também, mantendo um certo contato sem nos envolvermos demais com as questões da cidade. A casa mais próxima era da minha avó, a poucos metros dali, onde viviam também minhas 2 tias solteiras. Este era o nosso universo que, quando nasci já estava praticamente formado. A minha maior referência era (ou é) meu irmão mais próximo. Nas minhas memórias um ser extremamente ágil e esperto, forte e veloz, que podia subir onde eu jamais alcançaria, o topo das árvores: as grimpas, como chamávamos. Em quase todas as minhas lembranças da infância, vejo a presença dele. Em momentos de muito gás, correria, aventura. Companheiro nas partidas de vôlei nas quais a “rede” (um barbante) era amarrada de um lado no pé de goiaba, do outro na grade de uma janela da casa branca da fazenda. Aí já companheiro na rivalidade, na vontade de vencer, de ser melhor sempre, de ser craque na bola, na vida. Todos os dias uma nova disputa, sem tédio, sem juiz, com regras criadas pelos dois. O cara foi crescendo, virando galã, pegando uma fama de gente-boa, conquistando todos que passavam em sua vida. Ele se mudou para a capital, logo fui atrás. Se meteu nos times de vôlei da cidade. Fiz o mesmo. E nessa relação não só segui, como também fui seguido. Aprendi, mas ensinei. Falei e ouvi (menos que falei). Com ele a vida sempre foi mais fácil para mim, sempre havia um espelho, um comparativo, uma forma de discutir sem abrir feridas e, até mesmo, sem querer escondê-las. Uma troca que se estende por anos e anos. Um rumo, bússola, referência e um tanto de outras inúmeras palavras bonitas, infinitas até. Fico pensando que todo mundo merece um irmão assim, sei que muitos têm e espero que saibam o quanto é bom. Vejo agora o meu irmão caminhando por um rio em busca do mar. A caminhada é lenta, a água é rasa como dos córregos que nos banhávamos quando crianças. É prazerosa. E, sendo assim, este encontro com o mar é natural, flui, sem sustos. Como tudo que foi construído por ele, e entre nós.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Esta cidade me atravessa

O Rio de Janeiro estava especialmente diferente para mim: um solzinho não muito quente, mas firme e que gerava uma segurança em quem estava sob. Automóveis e ônibus vencendo as ruas entre as montanhas com agilidade. Passa Cosme Velho, passa túnel, passa Lagoa, passa Jardim Botânico. Tudo leve: sol, montanha e águas mansas como quase nunca se vê nessa terra. Mar calmo, água gelada para esfriar a alma. Lugar ao sol não faltava. Um mundo tranquilo e inquietante ao mesmo tempo, já que a sensualidade explode neste território. Esperar o pôr do sol, a conversa fica afinada, a noite cai sem aviso e manda uma bola cheia lunar que vem lá do Arpoador. O mundo sobre grãos de areia se vira para o espetáculo e aplaude para não dispensar o ritual da tradição. Sentir a textura dos grãos massageando a sola dos pés a cada passo, isso já à noite. Sentir uma enorme paz. Muita gente, todo mundo aparentemente bem, na paz, usando bem tudo que a cena pôde proporcionar. Neste território de guerra, uma imensa paz. Que foi transportada para calçadões, praças, lugares descolados, lojas doidinhas, pessoas em sintonia com o mundo. O Rio estava especialmente diferente para mim. Ou eu estava especialmente diferente para o Rio.

domingo, 16 de março de 2008

Desamando e desarmando

Tenho falado muito em ser uma pessoa seletiva. Que isso é fundamental atualmente na minha vida. Geralmente, meus amigos filósofos de mesa de bar contestam, falam que eu sou estranho, sistemático e tal. Mas esta construção que passa por gostar de alguns lugares e situações e detestar outras parece ser o ponto central da minha alma, agora. E isso incomoda: não a mim, mas ao outro. Todos treinados pelos pais escolas e programas de tv para “amarem uns aos outros” incondicionalmente. O que penso hoje é que ser assumidamente antipático a determinada pessoa é uma grande forma de amor. É desarmar uma bomba que pode explodir a qualquer instante. “Não nos damos bem e daí. Alguém aqui acredita que é possível ser bacana com todo mundo?” Talvez nada precisa ser falado e dá pra ser educado, claro. Mas bancar uma onda de sorrisos, beijos e abraços constantes é uma escravidão absurda, difícil de ser suportada. O engraçado é que esta equação, que a princípio parece restringir opções, só multiplica e aprofunda as relações e tudo o que você faz na vida. O filme que você vê é o que realmente gosta, o livro, o amigo, o amor. Você passa a trepar, no sentido de fazer com prazer, com tudo o que está à sua volta, que na verdade, foi construído por você mesmo. E o melhor desta história, é que laços com pessoas que não devem fazer parte da sua vida podem ser rompidos de uma maneira leve, sutil, sem rancores. Com este rompimento se vão aqueles que uma dia foram potenciais inimigos e hoje são apenas pessoas comuns, que não interferem em sua vida e que, por isso, não têm o menor motivo para serem desamadas por você. Sacou?

terça-feira, 11 de março de 2008

Dentro de cada um tem mais mistérios do que pensa o outro

A seção de análise havia terminado, muitas dúvidas ainda e uma dor absurda no coração (que mais falava da alma mesmo). As duas últimas seções (essa porra é com cedilha mesmo? É uma parte, uma secção ou um todo: uma Sessão da Tarde? Bom, pelos exemplos fico com seção. As da tarde, com aquela marca gorda e com muitos "esses" eram deliciosas e leves, lembram férias, primos, chuvinha, não esta tortura aqui.)Então, as duas últimas seções haviam sido muito doídas, tive que falar de coisas que preferia ter esquecido. Deixado lá num passado que minha analista nunca iria descobrir. Crimes perfeitos ocorridos contra mim, neste caso. Resolvo mexer na ferida e, pronto, estava de "cabeção", levaria um tempo para me recuperar e voltar para minha vidinha de pessoa feliz, comum, trabalhadora, educada e outros exemplos que meus pais me ensinaram parecer ser. Provavelmente já sabia que não ia ser fácil e deixei o dinheiro separadinho no bolso esquerdo da calça jeans, perto da fivela do cinto e abaixo da cueca que ainda cisma em aparecer. As 3 notas estavam ensopadas. Senti aquele quente-úmido nas mãos e entregue-as à analista. De repente me lembrei das duas seções com cedilha que estava pagando e soltei minha conclusão: "dinheiro suado".

domingo, 2 de março de 2008

Chove lá fora e aqui

O domingo amanheceu chuvoso.
E como o aguaceiro da noite de sábado,
fez repousar qualquer ânimo para a balada.
Para quem acordou às 8,
um domingo de chuva é quase um mar de enormes segundos amontoados
cujo problema não é o passar lentamente
Mas a não vivência destes em seus agoras
Um segundo, no caso, é apenas o pensar
no que fazer com os outros segundos
que, olhando para o céu e para a bela paisagem não-convidativa a estar ao ar livre,
muito provavelmente serão segundos molhados
Um mar de segundos molhados
Um arrebentando como ondas atrás do outro
Quem está em minha casa dorme
Quem está nas outras casas também
Melhor pegar o jornal
Opa! Delícia, tomar café e ler um bom jornal de domingo
Daqueles gordões, cheios de assunto "você leu?".
Desço, ninguém lá embaixo
As pessoas das outras casas estão realmente dormindo
Avisto o jornal: meu programa seco do dia
Minha esperança embrulhada em um saco plástico de 2 centavos
Só que outra pessoa que não estava dormindo
e que não estava gostando nada disso, nem da chuva
Não fez a menor questão de jogar o meu programa seco
Em um lugar que não o mele
Retirei aquele plástico vagabundo e superresistente à ação do tempo (filho-da-puta!)
Mas não à ação da ira ou desleixo de um motoboy que trabalha aos domingos e feriados
Faça chuva ou faça sol
Vi fatos, mapas, dados, ilustras, projetos gráficos tentando-ser-moderninhos, ensaios, raciocínios, utilidades e inutilidades ensopadas
Sob a previsão de um domingo sem a esperança daquele momento-praia
Mesmo assim, sem duvidar que segundos melhores virão.