sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Manifestação Popular Horizontal

Em um mercado no centro de uma capital nordestina converso com um morador de rua. Eu sentado à mesa, tomando uma cerveja. Ele pedindo algo: uma moeda, um cigarro, um gole de bebida em seu copo plástico, uma atenção. Dei o gole e a atenção. O restante, por motivos diferentes do dele (não havia caixas eletrônicos por perto nem cigarros à venda), eu não tinha. Estávamos quites. Senti uma vontade tremenda de participar da Marcha das Vadias em Belo Horizonte. Havia descoberto recentemente que, para ser feminista, não precisava ser mulher. E aquilo do feminismo me atraía muito. Lutar pelo direito que dizem que eu não tenho. Lutar pelo poder sobre o meu corpo. Pela decisão. Lutar na rua. Livre. E junto a pessoas que, se não se sentem livres, lutam para se sentir mais um pouquinho, a cada passo. Explodem nos meios de comunicação protestos urbanos em todo o país. O interesse da mídia tradicional cresce junto às consequências que estes trazem para a sociedade de consumo: trânsito infernal, depredação do patrimônio público e privado, envolvimento de estudantes de classe média, abuso do poder policial e ataques à própria mídia, representada por seus repórteres. Além de gás lacrimogênio, muitas dúvidas no ar. Aceito o convite feito por mim mesmo de ir à manifestação. Cadê? Chego atrasado, já foram. Um pequeno grupo dialoga e cria estratégias para fechar a principal praça da cidade. Como assim? Sem noção. Escuto conversas absurdas, para o meu mundo higiênico. Parar o trânsito, enfrentar a polícia, bater, apanhar. Invadir o inconstitucional Território Fifa. Isso não exist...ia. De repente formam um cordão humano e fecham a 1ª avenida. A 2ª. A praça. Uau! Vamos caminhar. Andar sobre pontes e viadutos em um movimento de liberdade. Então a cidade é minha? Posso pular esta mureta? Posso sentar no asfalto. Posso sujar a roupa? Não vou ser roubado? Preso? E se formos até o Mineirão andando? E se a polícia nos atacar? E se quebrarem tudo? E se morrer alguém? Ir adiante sentindo a enorme diferença entre passar de carro por uma avenida e andar sobre ela. Ou com ela, pela 1ª vez, talvez virgem. Surfar, olhar cada canto, cada cor de olho, que nas propagandas são apenas azuis, das pessoas que moram por ali mesmo. Que oferecem água ou maconha. A água é grátis, o copo é coletivo. Vai querer? Sim. Com cuspe e sem culpa. E a maconha está mais barata do que a passagem, fala a quase ainda criança estrategicamente colocada sobre a passarela. Uma mulher, à margem, pede para um rapaz tirar a camisa da cabeça. Ele diz que não, que esta decisão era dele. Dos mascarados, só podemos diferenciar as cores dos olhos.Que são muitas. Cura Gay? É o meu pau duro. Diz o rapaz, para todo mundo ler e ouvir, em seu cartaz. Estou sob o viaduto São Francisco. Olho para trás e vejo o belo horizonte, pela primeira vez, horizontalmente. Sempre achei aquela vista linda, mas a pressa era demais. Estava sempre ocupado e não tinha tempo para enxergar. Ver? Só do alto. Chegando ao front, escuto pessoas gritando: não sobe no viaduto! Eu subo. Camarote vip com pulseirinha que vai ficar para o resto na vida em meu braço. Fogo, correria, pedras de cá, bombas de lá. E qual é mesmo o placar do jogo? Alguém morreu? Caiu do viaduto José de Alencar pra eles. Douglas Henrique para nós. Anoitecendo, um medo. Volta como? "Gangues" passando. São donos da Antônio Carlos, não? Vivem a avenida, não apenas passam sobre ela. "No meio daquele tanto de pobre", como já ouvi em uma reunião de trabalho. "Pra que colocar outdoor ali?" Só serve para esconder a favela. O transporte público e gratuito era apenas para quem tivesse ingresso de R$200, R$300 para o jogo da Copa das Manifestações. Pra nós, nada. Avenida fechada, no buses. Sentimento de que não foi convidado mesmo para a festa. Se fodeu e não recebeu a grana do táxi. Nem do busão. Vejo policiais do alto de um morro jogando bombas nas pessoas. Pareciam crianças se divertindo. Brincando de guerra. Corri da cena assustadoramente. Alguém curtiu Assembleia Popular Horizontal no Facebook. Curti também. Marcaram debaixo do viaduto Santa Tereza e eu, mais uma vez, fui. Quanta gente! Quantos loucos e tudo muito organizado. Sinais não sonoros para aplaudir, focar, pedir que conclua. Cronômetros, tempo e inscrições organizadas. Metodologia de anarquistas? Assembleia Popular Horizontal. 2 horas em pé, não me vi capaz de ficar sentado no chão. Ia doer mais. Fui embora. Acho que o evento durou umas 5, 6 horas. Lá definiram acompanhar a próxima sessão da Câmara Municipal devido à importância da pauta. Foram e por lá ficaram. Exigiam ser ouvidos pelo prefeito, que parece não ouvir ninguém que não seja da sua turma. Fui. Pessoas acampadas em barracas organizadas. Lá dentro mais reuniões, discussões, diálogo. Regras claras. Bebida, cigarro, bate-papo só do lado de fora. Destaquei um adolescente de uns 14 anos, quase ainda criança, no meio das pessoas. Falei com a minha amiga Lu, do Baixo-Bahia Futebol Social: sei quem é este menino. É o sobrinho da "minha" faxineira. Sei pela descrição que ela faz do sobrinho. Aquilo mexe com a minha curiosidade. Esta minha, de verdade. Outra amiga sugere: vá ao banheiro. Está lindo! Fui e estava: pichações com quase todo tipo de pensamento libertário que eu conhecia e não conhecia. Arte urbana. Lindo e cheio de sentido. Ser lindo é ser cheio de sentido, para mim. O banheiro não tinha gênero. E estava completamente limpo e cheiroso. O menino estava lá. Dançando e cantando (ou dublando) alguma Byoncé. Tinha as unhas pintadas de vermelho, uma calça bem apertada e uma camisa amarela, de time de futebol. "Lu, pergunta o nome dele!" Eu pedia. Ela questiona se é muito importante para mim. E sai. Eu pergunto a ele: qual o seu nome? Ele responde com a senha mágica que queria ouvir. Estava lá, no banheiro, sem gênero. Limpo e cheiroso. Longe do preconceito da sua família que o pinta de outra forma. Coisas incríveis acontecem no inusitado. A ocupação resiste. A ocupação consegue a reunião. Elege representantes incrivelmente articulados. Tem gente de classe média, tem morador de terreno invadido. Tem de 18 e 28. Tem preto, tem branco. Tem cor. Puxa para um vermelho sangue, às vezes com tarja preta. Mais arco-íris do que verdeamarelo. Lilás do feminismo. Laranjas do Movimento Fora Lacerda. Este foge da reunião. Gritam "Poder Para o Povo" com o braço esquerdo em riste. Eles sobem nas mesas, deitam nas cadeiras e dizem que ficam enquanto o outro não voltar e continuar o diálogo. Calça jeans e camiseta, cabelos perfeitamente despenteados, raspados, crespos, 2 bonés verde-exército com a bandeira de Cuba. Tênis de skatista. Dicas de moda para enfrentar dias de batalha. Conseguiram parte do que queriam. E teriam que decidir se iriam desocupar. Após 8 dias morando lá, os desgastes eram visíveis. Pessoas gripadas pelo frio ou pelo ar-condicionado no talo, durante a noite. Desconforto, intensidade. Decidiu-se, após argumentos apresentados, pela saída no dia seguinte. Partindo em marcha para uma grande festa já programada para o domingo. Ali naquele pedaço de rua, onde moram mendigos e pobres pegam ônibus e metrô. Entre a Praça da Estação e o Viaduto Santa Tereza, que para mim já estavam batizados de praia. E ponte. Uma megafesta com muitas pessoas e atrações. Nenhuma estrutura. Nem precisa. Incrível é não precisar de nada. Corpos juntos, alegres. Ideias interessantes. Vidas alternativas. Apresentações, balanços, piscinas de plástico, discos de vinil, badulaques à venda. Ambulantes possíveis e presentes. Estes mesmos que já foram expulsos de tantos outros eventos da cidade. Até o Obama, fake, compareceu. Nestes espaços, há sempre espaço para o maluco. Ele não é expulso. Tem sempre um por ali dando o seu recado. Os encontros continuaram a acontecer, sempre mantendo seus códigos e propostas. Após a euforia midiática e o fim de uma ação corajosa, menos pessoas apareciam nas assembleias. Muito já estava organizado: grupos de trabalho para discussão e planejamento de propostas, 11 GTs, tinham suas agendas próprias. Aulas sobre temas de interesse aconteceram ao ar livre. Houve um momento de interseção com o movimento sindical, já que este convocou uma marcha para o dia 11 de julho. Foi interessante perceber como se deu a união das duas linguagens. Uma muito nova e outra já com muita experiência e vícios acumulados. Confesso que senti um certo desconforto. Uma diferença nos corpos, na motivação. Um movimento calejado que enxergou no outro uma possibilidade de oxigenação, mas que não o alcançava em questões essenciais, como a sensualidade. A ideia é o sujeito se apresentar sem moralismo, sem machismo, sem racismo. Sen...sualismo. Uma das lutas dos sindicalistas era contra a PEC que possibilita, com mais facilidade, a contratação de trabalhadores terceirizados pelas empresas. E citam que este fator tirou o poder de estar juntos, unidos na mesma causa. Que a terceirização tirou deles o próprio chão. Entre tantas críticas e já passados alguns anos de seu surgimento, podemos concluir que a internet é a grande responsável por trazer de volta este lugar de encontro e diálogo entre as pessoas. Lugar onde a comunicação pode se dar de maneira ativa e democrática. Lugar que tira as pessoas do lugar. No Facebook, palavra mais falada atualmente do que Rede Globo, encontramos e reencontramos pessoas. Conhecemos um pouco do que pensam, por ser um lugar de opinião. Curtir isso e não aquilo já emite muitos sinais. Compartilhar ainda é mais forte. Preencher aquele espaço vazio pode ser considerado até arriscado. Posso dizer que reencontramos e escolhemos a nossa turma. E seguimos agora com ela, sabemos que perdemos muitos amigos que nos achavam ou que achávamos o máximo, antes de conhecê-los verdadeiramente, no Orkut, no Twitter, no Face. Pode ser até triste, mas as redes sociais nos permitiram compreender melhor as posições de pessoas que não conseguíamos decifrar no mundo real. Junto ao nosso encontro real nas ruas, em que estar de corpo presente, escrever um cartaz e caminhar com ele levantado já comunicava, havia uma grande câmera nos filmando o tempo todo, em tempo real. Não a da grande mídia porque esta fazia o recado perder todo o sentido. A cobertura dos telejornais me fazia pensar que eu estava em um outro lugar, não aquele do qual falavam. Não as câmeras instaladas nas ruas que nos vigiam incessantemente. Mas uma câmera Ninja, capaz de estar presente desde um intervalo para o café entre uma pauta e outra até nos momentos em que as bombas e balas estavam explodindo no front. Transmitindo aulas, palestras, invasões, momentos tensos, saraus, bate-papos informais. O ninja está ali. Está não: o ninja é. O ninja não cobre o evento, como a imprensa tradicional. Ele faz parte do evento. É manifestante. Um retrato sem cortes e sem edição do que está acontecendo. Em um momento em que a imprensa sofre de um descrédito absurdo e é bombardeada nas redes sociais. A mídia Ninja quebra com a relação de poder da informação, vinculada aos grandes grupos e seus patrocinadores. Um celular, um laptop, uma mochila e muita, muita coragem. Claro que era esta última parte da receita que estava faltando em nossos colegas da comunicação para que algo de novo surgisse. Eles viraram cúmplices dos manifestantes e garantiram a segurança de que o que será reportado é nada menos do que a realidade. Quem os assiste também virou cúmplice: Fica aí, um ninja falava. "Vocês, 10 mil que estão nos assistindo pela Pós-TV são a garantia de que nada errado vai acontecer." Na relação mídia x espectador, agora este segundo passa a ter um papel fundamental. Tenho orgulho quando o ninja está no meu ângulo de visão, perto de mim ou quando, sem querer, esbarra em meu corpo. Ou me filma, ou me clica. Aquela foto será eterna em minha mente. E nem quero mostrar para ninguém. Como li em uma resenha: "Anota aí, eu sou ninguém." E nada como se sentir ninguém para ter a certeza de ser uma grande pessoa. Mas quando eu crescer, eu quero ser NINJA. Mesmo após tanta polêmica. Em minha cabeça volta a conversa que tive com aquele morador de rua no mercado de Aracaju. Ele me conta coisas de sua vida, que tem família com condições, que foi trabalhador, mas que por ter perdido o emprego e por uma dificuldade de se relacionar em casa, se jogou no mundo das ruas e das drogas. E que agora vivia assim. Tudo que ele falava, parecia de uma sinceridade pura. Por trás dos cheiros e do pó havia um homem bonito, forte, cheio de vida. Ele me disse que tinha muita vergonha daquela situação e isso doeu profundamente em mim. Por que ele havia de ter muita vergonha e eu não? Onde está esta divisão que estabeleceu que eu era o turista vencedor e ele o drogado inútil? Mas aí, rapidamente me veio a certeza de que esta divisão não existe, que éramos uma coisa só, como vândalos e manifestantes, não como a mídia e o estabelecimento querem. Então eu respondi a ele: não fale assim...quer dizer, fale. Só quero dizer que eu também tenho muita vergonha. E quem não tem não passa de um sem-vergonha.