quinta-feira, 5 de março de 2020

Uma garota chamada

Assisti ao filme "Uma Garota Chamada Marina" no cinema. Fiz questão de ver na telona. Saí tão impressionado com aquela história (que sei de cor) que resolvi escrever um pouco sobre o assunto. Nascemos e caímos, querendo ou não, no campo do Outro. Um Outro que nos conduz e nos traz comandos de como ser isso ou aquilo, certo e errado, bem e mal, sucedido ou não. Parece que ter uma carreira de sucesso, ganhar um dinheiro, comprar um ap, viajar o mundo são receitas de felicidade e caminho comum das pessoas bem-sucedidas. Mas...e o que a linguagem não consegue traduzir nem dar conta, isso que a psicanálise chama de Real? E o sujeito? O desejo, aquele que também não há palavra que traduza? Marina tem na voz o instrumento de todas essas conquistas citadas anteriormente. Tem a sedução ali. Todos se encantam. "E essa voz que Deus me deu."Claro que, além da voz, outros atributos se juntam. Mas é a voz que cumpre a função fálica da mal-sucedida tentativa de completude do outro, do desejo do outro. Como deve ser bom! Ser muito craque porque Deus deu. Atravessar o mundo, a vivência, a experiência de estar aqui sem pagar ingresso de entrada nem impostos. Pensamos e suspiramos nós simples mortais. Só que não. Onde se escondeu um sujeito único, faltoso e, por isso, desejoso por trás daquela voz? Onde se escondeu alguém que é muito mais do que a grande cantora ou o maior sucesso de um mercado? O que esta maior cantora tem de peculiar em relação a outra maior cantora? Às vezes é preciso matar o pai para se aproveitar dele, como já nos ensinou o gênio Lacan. Às vezes é preciso matar o que nos é mais caro para que o sujeito seja do seu jeito. Mesmo que isso custe muito, doa muito, leve muito tempo (tempo lógico, claro!). Uma voz não deveria poder tamponar um sujeito. Nem fama, dinheiro, sucesso. Nem excesso ou falta de "amor" de um outro. Nem compras nem remédios nem profissão. Desejo é um caminho muito árduo. Nem de longe é o mais fácil. Marina diz no filme: "tentaram me cristalizar" fazendo referência ao Cristo Redentor. E o nome dela está lá mesmo, não no Corcovado, mas em um hotel fazendo parte de uma das paisagens mais fotografadas. Até hoje. Mesmo que o Hotel Marina não se acenda mais, a marca, o registro fica de alguma forma. Resta. E o sujeito encontra sua saída. Às vezes é preciso ser vira-lata para quem tem algo de vira-lata. É preciso sair na multidão de São Paulo, pegar o metrô, gritar keep walking no meio da Paulista. Ser nada. Nada para ninguém. Esvaziar-se do outro e, paradoxalmente, encher-se de outros outros. Outros mais vazios de sentido, outros sem tanto afeto, afetação. Cair do palco e pular feito pipoca. O filme mostra com sabedoria este momento desta sujeita, que deixou de ser A cantora para viver e sobreviver. A cura, como a do queijo que falo, é uma alegria. A sorte (minha) é que vi isso acontecendo e participei de uma daqueles processos criativos da Marina. Trabalhando para e com ela, frequentando sua casa e estúdio montado lá, como mostra no filme. Vendo todo aquela fortaleza criativa e objetiva, que agora pode ser tocada pelo subjetivo, pela calma, pelo peculiar, por algo que não existe nos corações cristalizados pelo podre mundo mercado-lógico. Pelo feminino. Uma alegria isso! Alguns precisaram morrer, às vezes como sujeito, às vezes literalmente. Tem gente que está vivo biologicamente, mas já morreu simbolicamente. O filme nos mostra um caminho, o da Marina. Ela usa de seu arsenal de significantes para se impor perante um outro perverso, abusador, frio e calculista. Mas, por favor não se enganem, este caminho é único. Cada um que crie o seu roteiro nessa incrível fantasia que é viver. E não posso deixar de concluir deixando a mensagem: Marina não é uma cantora. Marina é um gênio. Foi bem melhor reexistir para Marina Lima.